A roda de sal contorna a terra seca, a poeira avermelhada se levanta a cada passo dos
dançarinos, mortais, o brilho refletindo a fraca luz alaranjada sobre os corpos, os olhos
negros e duros, posicionados imóveis em relação aos corpos pesados mas repletos de
alguma graça, do lado de fora os urros cavernosos e palmas secas, a primeira lâmina faz
seu movimento, todo pescoço a carrega para a frente, desce acertando o vazio, o corte
na nuvem de poeira, o outro se afasta estendendo uma encardida bandeira portuguesa, e
dispara com a ponta reta de esgrimista, raspa a lateral do rosto que se dobra em parábola
abrindo o caminho para um novo corte, o recuo atrasado ao contra-ataque faz abrir no
peito o corte, pelas narinas pequenas o ar entra e sai mais pesado, a lâmina tenta um
segundo acerto, é travada pela pinça que se abre da respiração dura, as palmas secas
crescem, os urros, os dois dançarinos se apoiam na tensão, os pés vacilando, arrastando
a poeira no ritmo seco de tango, nenhum quer ceder, diante da morte hesitar é o último
movimento, a música para, o encontro se torna o das paredes, o que está em jogo é peso,
se abrem a lusa bandeira encardida e um lenço marrom longuíssimo, os corpos tensos,
sustentados pelas pontas dos dedos e os pescoços em riste, quando no silêncio a
linguagem é suspensa, a estrutura rompe, os rostos caindo pros lados liberando o sangue
do beijo áspero, agora é uma questão de velocidade, a vigorosa e viril investida da
rapieira perfura o calor, abrindo as ondas turvas da poeira vermelha, a rosa se abre no
peito, a ponta coberta do viscoso sangue alimentício se afasta, um grito seco, nem
humano, nem animal, o pescoço torto finge a dramática morte e desce convertendo-se
em katana, rompe o tempo, o silêncio branco, a morte, o risco longo que se abre no
pescoço libera a erótica víscera efervescente que pinga ácida no chão seco, um fruto
maduro que quando dele comer se abrirão os olhos e serão como Deus sabendo do
homem e o animal, ali, os dois estufam os peitos, diante e sobre o corpo do Deus morto,
um riso mútuo, o movimento da respiração dura em sanfona, rio enquanto e porque tu
ris, correr ao encontro duplo de amantes, amam porque pulsam as artérias, porque se
prendem os olhos, a lâmina da katana molhada de suor diante da sanguinolenta ponta da
rapieira crua, é o último passo do baile, o último encontro dos amantes, o ar da poeira,
do calor, do suor, da terra, os uivos, as palmas, tudo se desfaz, diante do primeiro que
hesita, corpo ao chão, ao pó.