SEÇÕES

a luz contra a barreira da chuva

por Natália Meireles Rodrigues


A luz contra a barreira da chuva:
O estranho em Os Papéis do Inglês e O Coração das Trevas


[sem título]
– Qual é o nome da polonesa mesmo?
– Vera Zawadzka.
– Vera o quê?!
– Zawadzka, Z-A-W-A-D-Z-K-A
– Caraca, não podia ter um nome mais normal, não?

     O diálogo acima ocorreu em uma conversa entre estagiários do coral Altivoz da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que iria receber um coral polonês, vindo de intercâmbio para o Brasil. É interessante pensar no parâmetro utilizado pela primeira voz apresentada no diálogo para designar o que é “normal”. Claramente, o lugar onde vive não possui pessoas com nomes como esse, construídos dessa forma e, então, essa organização de fonemas é estranha aos seus ouvidos. Em seu próprio sobrenome, a polonesa carrega uma bagagem que remete à sua origem e lhe atribui características que a diferenciam dos interlocutores em questão. Essas cinco frases trazem de maneira simples questões que permearão esse texto, ao discutirmos os romances O coração das Trevas, de Joseph Conrad e Os papéis do Inglês, de Ruy Duarte de Carvalho, em que também teremos indivíduos que entrarão em contato com o estranho.
     Em O coração das Trevas, o marinheiro inglês Charles Marlow narra a sua experiência como capitão de um barco a vapor ao percorrer o rio Congo. A história se apresenta em flashback, Marlow a conta para os seus companheiros de viagem enquanto navega sob o rio Tâmisa, em Londres. Entende-se, então, que o Marlow que está narrando já não é o mesmo Marlow do início da narrativa, está marcado por tudo aquilo que experienciou. Quando o narrador-personagem descreve-se vendo um mapa do rio Congo diz que ficou “[...] fascinado da mesma forma como a serpente fascina um pássaro – um passarinho imbecil” (2005, p. 17). O tom usado pelo narrador ao chamar-se de “passarinho imbecil”, assim como a menção do rio como uma serpente – imagem associoada à sedução e trapaça – induz-nos a esperar uma quebra de expectativa em que o Marlow que faz de tudo para estar nesse espaço que tanto o fascina, provavelmente não encontrará o que sonhava.
     É importante a escolha de Conrad de deixar um de seus personagens, Marlow, narrar a história. Como afirma Friedman (2002), “Se a ‘verdade’ artística é uma questão de compelir a expressão, de criar a ilusão da realidade, então um autor que fale em sua própria pessoa sobre as vidas e fortunas de outros estará colocando um obstáculo a mais entre sua ilusão e o leitor” (p.16). Adentramos na narrativa de Marlow como se pudéssemos estar no mesmo barco, e poderemos sentir a sua aflição e decepção quando, ao sermos guiados por meio de uma África selvagem, encontramos no lugar do excitante exótico o obscuro estranho.
     Assim que chega ao seu destino, a primeira imagem que temos é de nativos, em “Muita gente, a maior parte negra e nua, andava de um lado para outro como formigas” (p.27) e de um vagão ferroviário virado que parecia “[...] tão morto como a carcaça de um animal” (p.27). Animais, negro e morte. Essas são as primeiras imagens associadas à colônia e são as que perdurarão durante todo o livro. Não há um tempo para descoberta, uma lenta transição para a realidade em que o lugar se encontrava. Só o selvagem, o animal, a decadência, negros cujas costelas podiam ser contadas, “apenas sombras negras de doença e fome” (p.29). Ao ser confrontado com essa situação, mais que espantado com a condição decadente em que se encontram os nativos, Marlow mostra-se desconfortável, não sabendo como agir em meio a um território que se tornava cada vez mais desconhecido. A única imagem positiva se apresenta quando Marlow encontra outro homem branco, cuja postura e vestimenta se adequavam ao o que o narrador via como “boa aparência” (p.30). Porém, tirando o homem branco, o resto – o posto, o lugar, as pessoas – eram “uma bagunça” (p.31).
     Se o homem de boa aparência e roupas incrivelmente brancas foi uma imagem positiva em meio à selva descrita por Marlow, o sr. Kurtz seria o homem branco que definitivamente traria a sujeira a qual não seria possível limpar – trazendo, talvez, certa ironia. Rio acima foi Marlow para encontrar o tal Sr. Kurtz, que controlava a maior região de marfim, entusiasmado em encontrar uma figura emissária do progresso. O que encontra, entretanto, é um homem cuja ambição desmedida fez com que cometesse atos de extrema violência e que adoecesse física e mentalmente. Kurtz podia ter produzido muita riqueza, mas o que o cercava eram as cabeças de seus inimigos em estacas.
     Quando está prestes a morrer, Kurtz diz para a selva “Ah! Mas ainda arrancarei mais do seu coração!” (p.81) e logo depois, grita a alguma imagem, alguma visão “O horror! O horror!” (p.83). A que horror Kurtz se referia? Ao horror de suas próprias ações? Daquilo que surgiu dentro de si quando se encontrou em um lugar estranho, onde podia reescrever suas próprias regras? Não importa obter uma única resposta, porque já estamos tão envolvidos na história que podemos sentir o horror, refletidos em partes escuras dentro de nós mesmos. Mais que a busca de Marlow pelo rio, mais que sua busca por Kurtz em uma viagem para o que parece o centro do mundo, temos uma viagem para o intrínseco do coração humano. A ilusão de realidade criada nos faz sentir como se qualquer um de nós pudéssemos ser Kurtz, como se no contato com o estranho, diferente de nós, o horror pudesse aparecer – em forma de medo, receio, repulsa, ódio, violência –, porque o centro do coração humano é marcado pelas trevas.
     Além disso, não é possível ignorar que o narrador conta a história sobre a subida do rio-serpente localizado no coração das trevas enquanto sobe outro rio, esse localizado em Londres. A maneira com que descreve o ambiente em que se encontra, mesmo estando agora em terreno familiar, carrega o mesmo tom de páginas atrás quando se encontrava na África: “A visão do mar à nossa frente era barrada por um banco de nuvens negras, e o tranquilo canal, que conduz aos confins da terra, corria escuro sob um céu nublado – parecendo conduzir ao coração de imensas trevas” (p. 87). Fica implícita a possibilidade de que as trevas não teriam deixado Marlow quando este saiu do lugar que lhe era estranho. As trevas não se encontram somente nesse lugar, mas no íntimo do nosso ser.
     Se admitirmos que a língua possui propriedade dialógica (BAKHTIN, 2010), que “existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela linguagem do outro, é sempre e inevitavelmente também a palavra do outro” (FIORIN, 2004, p.37), ou seja, que nos construímos e percebemos nossa realidade a partir do contato com o estranho a nós, que somos inseridos dentro de discursos vigentes desde o momento em que recebemos nosso nome, vejo as trevas em Conrad como o estranho. Relembrando Kristeva (1994) “o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros” (p.9). Não somos senhores de nossa própria morada, já dizia Freud. Nós a dividimos com esse outro, esse estranho que é por nós recalcado, mas volta sempre. Há no ser humano uma fragmentação intrínseca, somos seres dividos.
     Se o estranho é algo que nos constitui e não podemos nos distanciar dele, com a sua narrativa, o autor nos leva a perguntar: fora de nosso ambiente de origem, fora das regras que regem esse ambiente, quem diz o que é certo e errado? Parece que ao sermos desenrolados desse plástico protetor que são os discursos que circulam ao nosso redor e montam a nossa perscepção de mundo, vemos que muitos deles não estão ligados a nós de maneira tão profunda. Como admite Kristeva (1994), há uma liberdade, um frenesi sexual em deixar para trás tudo o que o constitui. Encontramo-nos diante de uma infinita gama de possibilidades. Em O coração das trevas essas possibilidades fazem os personagens trilharem caminhos obscuros, traz para a luz as trevas do coração, desconstruindo, de certa maneira, o discurso de que o projeto colonial seria emissário do conhecimento e do progresso, focando não em criticar o projeto em si, mas, de acordo com Luiz Costa Lima (2007) na “ineficiência e o egoísmo que o marcavam” (p.200).
     Visto isso, me parece interessante também pensar o porquê de Chinua Achebe (2012) apontar que em O Coração das trevas “Conrad conseguiu transformar elementos provenientes de séculos de textos transparentemente grosseiros e fantasiosos sobre os africanos em um texto de literatura permanente e ‘séria’” (p. 85), considerando o romance altamente nocivo por considerar como “alta literatura” uma representação da África altamente questionável. Realmente, a representação dos africanos e da África narrada por Marlow possui várias imagens estereotipadas – a África associada à violência e a uma terra primitiva, os africanos são ferozes como a natureza, muitas vezes se misturando a ela, sendo sombras, vultos, simples pedaços de corpos. Essa visão, entretanto, é a visão de Marlow, que já vem para esse lugar constituído de toda uma ideologia já formada, com seus próprios preconceitos. A visão que Marlow tem da África talvez mostre muito mais sobre ele mesmo que sobre o lugar onde ele se encontra. Conrad não parece ter consciência de que está apagando a história do Congo, que está corroborando para a disseminação de estereótipos. Então por que é exatamente isso que acontece? Por que Achebe lida com a versão presente no livro como propagadora de um “real” fantasioso e incorreto?
     Para compreender melhor devemos apontar as reflexões de Lynn Mario (2004) sobre o que diz Homi K. Bhabha em relação à maneira preferida pelas literaturas coloniais e pós-coloniais para representar a relação entre o colonizado e o colonizador: “[...] a relação entre um texto e a realidade é vista como direta, e a realidade é vista como dada e pré-constituída. [...] A realidade é tida como essência ou origem que determina a forma pela qual é representada” (p.115). A representação nessas literaturas muitas vezes não se coloca como produto de um contexto histórico e ideológico, de discursos em diálogo, que se mesclaram, que se sobrepuseram ou censuraram discursos outros. Vê-se como o único discurso.
     Por narrar uma história em um lugar real, sobre um processo colonial que realmente aconteceu, pelo o fato de o próprio autor ter percorrido o rio Congo, assim como o seu narrador-personagem, o discurso esteriotipado de Marlow parece ganhar força e apagar os outros. Até mesmo o encontro com as trevas, que poderíamos ver como o encontro com o estranho, leva um tom de algo sombrio, como se o contato com o diferente de nós, revelasse o que de pior há em nossa constituição. Podemos supor que O coração das trevas coloca sua mancha tanto na África quanto em Londres, mas esse estranho que habita em nós é somente escuridão?
     Essa pergunta nos leva a outro romance, Os papéis do inglês, de Ruy Duarte de Carvalho. O romance também possui personagens que poderiam ter saído dos romances de Conrad, perdidos em um lugar estranho ao seu para entrar em uma busca que o levará, na verdade, ao encontro de si. O autor, aliás, apropriasse de vários trechos e diversas características de personagens que aparecem em textos de Conrad, como “O retorno” e Coração das trevas. Porém, a maneira como o romance é estruturado, assim como a representação de seus personagens e do espaço corrobora para que se quebre a ideia de ilusão do real e traz outra abordagem no que diz respeito ao encontro com o estranho. É interessante também, pois, uma breve análise desse romance, em que o autor não se apresenta como romancista e a narrativa para ele não cabe à forma do romance.
     Não é necessário chegar ao índice para ver o encontro de estranhos. Em pré-texto na folha de rosto já temos um inglês e africano colocados quase que em paráfrase sob o título e subtítulo Os Papéis do Inglês ou O Ganguela do coice e o encontro entre duas visões de uma mesma história em “narrativa breve feita agora (1999/2000) da invenção completa da estória de um Inglês que em 1923 se suicidou no Kwando depois de ter morte tudo à sua volta segundo uma sucinta crónica de Henrique Galvão”. Algumas perguntas surgem já nesse momento: quem narrará é o Ruy Duarte autor? Ele simplesmente inventará em cima de uma história já contada por outro autor? Afinal, é uma história sobre o Inglês ou sobre o Ganguela do Coice? E é assim que adentramos a obra de Ruy Duarte e assim permaneceremos: em constante questionamento e suspeita, passando os dedos sobre fios e mais fios emaranhados de histórias.
     O romance é percorrido por tantas variedades de texto que se faz até difícil destacar um, mas pode-se afirmar que temos o diário ou anotações de campo do narrador-personagem antropólogo, com datas de 23.12.99 à 01.01.00, e os e-mails enviados a uma misteriosa destinatária, numerados de 1 a 49. Tudo isso é separado em três partes: livro primeiro, intermezzo e livro segundo.
     O primeiro fragmento textual que temos é o do diário, datado 23.12.99. O narrador descreve a sua experiência em um lugar estranho, por onde anda perdido – “Andei às voltas por me julgar bastante, em terreno alheio” (p.11). Em uma narrativa onde o processo da escrita se torna o próprio romance, nos vemos por diversas vezes perdidos, parando a história do Inglês, avançando no relato de viagem, interrompidos por fatos históricos, discursos, monólogos, ou reflexões sobre a própria narrativa. Esse sentimento está presente, então durante todo o livro, seja nos acontecimentos que se passam entre os personagens, seja na própria prática de leitura.
     Quando passamos para a primeira parte dos e-mails, intitulada “A estória, a bem dizer”, não teremos exatamente a estória em si (ou a bem dizer). Temos primeiro uma apresentação da história, com suas devidas referências a Henrique Galvão, assim como uma crítica à representação única e fantasiosa da África “[...] nesta África concreta de que tu, e todo o mundo, tão pouco realizam no exacto fim deste século XX fora de um imaginário nutrido e viciado por testemunhos e especulações que afinal se ocupam mais do passado europeu que do africano” (p. 12). É visto que não é isso que nosso narrador pretende fazer, porém mais que tentar representar a imagem “correta” da África, se utilizará de estratégias para evidenciar esse processo de escrita e discutir o que é estar lá, em contato com o estranho, demonstrará a impossibilidade de apresentar uma realidade que se possa apreender na sua totalidade.
     Logo nos e-mails 1, 2, 3 e4 o caráter meta-narrativo já faz com que não nos sintamos confortáveis com o que o narrador nos diz, ao evidenciar suas estratégias para desenvolver a escrita, estamos cientes de cada discurso que percorre sua invenção, cada recorte que faz de outros autores e fica claro que há possibilidade para outros olhares, outras imagens que não aquelas. Se segundo Friedman (2002) quanto mais o autor fala sobre si ou conta com a sua voz o que se passa com seus personagens menos ilusão do real temos, em Os papéis do Inglês temos um narrador que assim se dirige: “Resistirias tu e não liquidaria eu qualquer eventual interesse que tivesse sido já capaz de despertar-te para esta estória, se a decisão de ta contar ou não me levasse a deter-me primeiro, e para não perder a embalagem, no que andará a passar-se por aqui, onde venho há um ano?” (p. 19).
     A etnografia, que também é texto, é colocada, da mesma forma, em questão. Na parte em itálico datada 25.12.99 há uma discussão sobre a experiência, que parece só poder surgir quando você se encontra alheio àquilo que lhe é familiar “Mas ela, a experiência, constitui-se a partir das referências. As do mundo e do tempo anteriores. E é a esse mundo anterior que a ordem das coisas, e da própria experiência, me impõe dar testemunho” (p.25). A experiência compete entrar em contato com o estranho e também deixar-se estar nesse contato, não adiantaria simplesmente passar um curto tempo nesse estado para dar testemunho do viu, do outro e de si mesmo. Assim como seria impossível dar testemunho sem ser interpelado por tudo o que você já viveu antes de estar naquele lugar e depois de estar. Ou como é dito no fragmento datado 29.12.99 “As subtilezas e os feitos do atleta estão ao alcance da percepção do público na razão directa do domínio deste em relação às regras do jogo [...] Como é que, alheio ao ténis, alguém pode exaltar-se com a arte de um tenista?” (p.93).
     É esse um ponto interessante, pois numa busca pelos papéis do inglês, que se revela mais como uma busca de si, assim como ocorre no romance de Conrad, a única maneira de realmente se conhecer – aquilo que está em seu íntimo – é no contato com o estranho. Porém, me parece que enquanto em Conrad esse contato é algo inevitável que nos leva às trevas do coração humano, em Ruy Duarte é também – e talvez de maneira mais importante – luz. A parte do livro intitulada Intermezzo (início na página 77) traz um grande exemplo disso. Temos o inglês, tocando um violino, a ler partituras e o Ganguela que se põe a tocar ao seu lado. De primeira vez um pouco desajeitados, vão cada vez mais conhecendo o ritmo um do outro, entrelaçando duas músicas como uma trança, em que ambas as partes podem ser vistas em seu mergulho entre a outra, num todo heterogêneo. Ganguela, depois de debruçar-se sobre a pauta de música com seus símbolos estranhos a serem decifrados, passa a ficar cada vez mais confiante e o último instrumento que traz já é grande e majestoso. O inglês depois também passa a acompanhar, na senzala, os solos do Ganguela, havendo, assim, um completo diálogo entre as culturas, entre esses dois estranhos, em que ambos aprendem muito sobre o outro e sobre si mesmos. O que parecia um som obscuro no primeiro encontro de instrumentos, demonstrou-se uma possibilidade maior de melodias.
     Por fim, quando há a resolução dos mistérios que acabam por circundar o livro – Por que o branco odiava as brancas? Onde estão os papéis do Inglês? Que ações levaram Perkings ao suicídio?, etc. – tudo acontece rapidamente. É necessário ler cuidadosamente para que não percamos o desfecho da trama. Os fatos se desdobram sem realmente um ponto alto de intensidade, como normalmente temos em romances que envolvem mistérios. Vejo-me a indagar o porquê disso quando chegamos ao fragmento “Assim, o Ganguela-do-coice tinha visto tudo, tinha entendido tudo. E era isso, precisamente, que pelo seu próprio punho, a grosso e tosco, estava escrito no caderno de Archibald: eu vi tudo” (p.176). Outra pergunta vêm a mente: O que o Ganguela-do-coice viu? Percebi-me ávida a saber como o Ganguela viu tudo o que aconteceu ao Inglês. Assim como pergunta o narrador “Tudo então o que eu poderia ter querido saber dos papéis do Inglês, e dos do meu pai, acabava por cingir-se àquela singela de ajustes, e se encerrava assim, ali?” (p.176) e mais qual é a moral de tudo, o que fazer agora “Clamar horror, horror, como faz Kurt no The Heart of Darkness?” (p.178).
     Não, “no fim do mundo, tesouros” (p.178). O título do livro nos leva à história do Inglês e o subtítulo a uma outra história, do Ganguela-do-coice, que não aparece em sua total descrição, mas insere a sua existência com três simples palavras. O silêncio de Ganguela só fez afirmar mais uma fez a impossibilidade da representação total. As palavras do inglês não vem com toda a intensidade que desejávamos talvez porque elas nunca poderiam surgir como pura realidade, então esse não é o único desfecho para aquela história, temos uma representação incompleta. Não há como realmente apreendermos tudo o que aconteceu e, portanto, não há necessidade de um clímax como em outros romances de mistério.
     Assim, o romance de Ruy Duarte, assim como o de Conrad, nos leva à constatação da inevitabilidade de falar do outro ao falar de si. Entretanto, enquanto em Conrad somos abatidos pelo horror, em Ruy Duarte temos tesouros. Enquanto em Conrad navegamos por um céu de nuvens negras, a virada do milênio em Ruy Duarte nos traz um espetáculo de luzes contra a barreira da chuva, que nos proporciona não um, mas dois arco-íris.

REFERÊNCIAS

ACHEBE, Chinua. O nome difamado da África. In: A educação de uma Criança sob o Protetorado Britânico. Trad. Isa Mara Lando. Companhia de Letras, 2012.
CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Coleção Novas Leituras, adaptação de José Vicente. Editora Nova Alexandria, São Paulo, 2005.
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Trad. Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LIMA, Luiz Costa. Capítulo II – Brancos e Negros na África de Conrad. In: O Redemunho do Horror: As Margens do Ocidente. Companhia de Letras, 2007.
SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In: Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outrasmisturas. ABDALA JUNIOR, Benjamin (org.). São Paulo: Boitempo, 2004.
BAKHTIN, Mikhail.O discurso em Dostoiévski. 1. Tipos de Descurso na Prosa. O Discurso Dostoievskiano. In: Problemas da Poética de Dostoievski - 5ª Ed. Trad. Paulo Bezerra. Forense Universitária, 2010.
FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: O desenvolvimento de um conceito crítico.
REVISTA USP. São Paulo, n.53, p. 166-182, março/maio 2002.
CARVALHO, Ruy Duarte de. Os papéis do Inglês. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.