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entrevista


     Marília Garcia é poeta, tradutora e editora. Participou do comitê de revistas literárias como a Inimigo Rumor e a Ficções; e é co-editora da Modo de Usar & Co. (com Ricardo Domeneck, Angélica Freiras e Fabiano Calixto). No final do ano passado, estreiou seu selo editorial junto de Leonardo Galdolfi, o Luna Parque, que lançou seu quarto livro agora em março. Marília escreveu 20 poemas para o seu walkman (2007), Engano geográfico (2012) e, por último, Um teste de resistores (2014). Foi professora no curso de Literatura da Unirio, onde deu aula para alguns dos integrantes do coletivo garupa. Atualmente, mora em São Paulo, e foi muito generosa conosco – e, como sempre, carinhosa – ao responder essas perguntas.  

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 Comecei a responder à mão com uma lapiseira numa folha onde estavam impressas as perguntas. Eu estava num ônibus cruzando a dutra, voltando para São Paulo. Tomei notas para as quatro primeiras perguntas e depois eu as reescrevi quando passei para o computador. A resposta à última pergunta ficou em branco no papel. Todas as vezes em que a reli na tela do computador, ri, como se não pudesse encontrar uma resposta, como se ela tivesse um efeito de loop. Resolvi contar isso, contar que a cada vez achava graça, contar que não sei o que responder.

dani e diogo: Marília, fale um pouco sobre o seu processo criativo de seu livro, Teste de resistores, e de como você chegou ao título.

marília garcia: Um teste de resistores começou a ser escrito logo depois de vir morar em São Paulo. Na época, eu tinha um projeto de livro bem diferente (de um livro que continua inédito) mas acabei sendo levada pela escrita deste Teste, como se ele estivesse ligado ao meu deslocamento.
     O livro começou com o primeiro poema ("Blind light"), feito para ser lido num encontro chamado "Autorias e teorias". Tinham me pedido um depoimento sobre o meu processo de escrita e queriam um texto por escrito. Eu tive muita dificuldade para preparar este texto, então percebi que minha dificuldade estava relacionada ao fato de não saber comentar o processo de escrita num momento em que esse processo já tinha “acabado”. Ou seja, se o poema não é parafraseável, como fazer uma paráfrase do processo? Como dar o depoimento de algo que não estava mais ali? Foi assim que resolvi escrever o depoimento como um poema, pensando nas questões enquanto elas iam acontecendo, usando o verso, o corte, usando outras vozes em alguns momentos, tentando fazer o registro do processo durante a escrita, como se fosse um percurso, buscando perceber o que me movia durante a escrita e, sobretudo, fazendo perguntas: como eu faço?, o que me interessa?, o que está em jogo?. As perguntas muitas vezes ficam sem respostas e permanecem em aberto, mas elas vão conduzindo o texto. O primeiro poema determinou o tom e a cadência dos poemas seguintes do livro, que acabaram também tratando, de algum modo, dos procedimentos, da reflexão em torno da escrita.
     Quanto ao título do livro, tenho que falar sobre o último poema, que traz a referência aos resistores. Mas antes dele, posso dizer que a ideia de teste vem de várias referências misturadas, além de ser algo muito central na experiência que a gente tem hoje. Penso num livro da Avital Ronell chamado Test drive, que comenta justamente o fato de vivermos imersos em testes, provações, ensaios... E o poema também pode ser visto assim, como a tentativa de encontrar um modo de nomear, um modo de produzir com a linguagem algo que não sabemos ainda o que é, algo que tentamos encontrar. Além disso, o livro me parecia como uma forma de testar essas formas de dizer, testar o próprio poema incorporando nele elementos que não estavam antes presentes nos meus textos (por exemplo, as referências pessoais ou o processo de reflexão sobre a escrita). A ideia de teste também se refere a alguns poemas que falam dela e testam o mundo com a linguagem: “Um teste de solidão”, do Emmanuel Hocquard, “Um teste de poesia”, do Charles Bernstein, cada um ao seu modo, mas os dois estavam presentes durante a escrita do livro – faço uma referência explícita ao Bernstein, ao mimetizar seu procedimento no poema “Um partida com Hilary Kaplan” (ele escreveu seu “Teste de poesia” enumerando em versos as perguntas de seu tradutor para o chinês); já ao Hocquard não refiro esse livro explicitamente, mas há muitas referências à sua obra no livro.
     Por fim, veio essa ideia do “resistor”, sugestão do google (como conto no poema) para substituir a palavra “resistência”. “Resistor” não era uma palavra gasta como “resistência” no campo semântico poético e achei que o teste que eu estava tentando fazer poderia ser de resistores e não de resistência, numa tentativa de descolar a palavra da própria palavra e de produzir um teste (em vez de repetir o teste de resistência).

dani e diogo: De que forma colaborar com revistas como Inimigo rumor e Modo de usar & co influenciou sua poesia?

m: Fui levada a ler de perto muita coisa do que estava sendo feito e também a fazer recortes, escolhas, ver o que me interessava mais, produzir relações entre textos e poemas. Acho que é uma forma de descobrir o que nos interessa e, sobretudo, de conhecer poetas, poemas, textos, ler traduções. Gosto de pensar a escrita como ligada ao processo de leitura e nesse sentido o trabalho curatorial de uma revista tem muito de leitura. Somos levados a entrar nessa “conversa infinita”. Além disso, o trabalho coletivo de edição é uma espécie de diálogo com o outro que nos abre e nos leva a ler textos que não conheceríamos se não fosse pela troca com os outros editores. A colaboração com essas revistas foi muito importante para conhecer outros pontos de vista, para me abrir (mesmo que tenham sido experiências muito distintas: quando comecei a colaborar com a Inimigo, eu já era leitora da revista; no caso da Modo de usar & co., pensamos juntos o projeto, a ideia do site, os primeiros números).

dani e diogo: Você foi professora da Unirio e acabou de lançar o selo Luna Parque. Fale um pouco sobre sua relação entre meio editorial e docência, e de como você opera nesses processos criativos que são bem diferentes do da poesia.

m: Embora diferentes, acho que essas atividades se complementam. Não sei se foi por indecisão do que gostaria de fazer, mas sempre busquei passar de uma para a outra e fazer trocas entre elas, dar um jeito de aproximá-las. Tanto na edição quanto na pesquisa acadêmica trabalhamos com recortes (de textos, de formas de ver o mundo) e tentamos produzir algo (o livro, o texto, o ensaio, a aula). Pensando bem, o poema também tenta produzir um espaço para a gente pensar e, nesse sentido, talvez a gente não precise fazer uma distinção tão marcada entre os processos. Penso agora no próprio curso de Letras da Unirio, em que essas atividades aparecem em perspectiva se tomamos, por exemplo, a oficina de escrita e o curso de teoria, que se relacionam. Ultimamente estou mais ligada ao processo editorial (a Luna Parque, que vocês citaram) e por ser uma editora totalmente independente e caseira, com tudo feito a quatro mãos e os livros encomendados aos autores, ela tem um ritmo próprio, que vamos determinando aos poucos.

dani e diogo: Você traduziu o poema “Eu não sei se Fernando Pessoa realmente existiu”, de Emmanuel Hocquard. Em contrapartida, Érica Zíngano traduziu seu poema “Le pays n'est pas la carte”. Fale um pouco sobre a sua relação com a tradução e como traduzir pode ser uma forma de criar um novo texto.

m: Acho que a tradução é uma experiência dupla de leitura e escrita: é um modo de ler com lupa o texto na língua original e, por outro lado, de buscar ferramentas, pensar na nossa própria língua e buscar nela os recursos para a escrita.
Sobre a segunda parte da pergunta, acho que a tradução pode ser vista como um texto novo se considerarmos que aquele texto nunca tinha sido escrito antes daquela maneira na língua de chegada. Se não existe um sentido anterior à escrita e o sentido se dá durante a produção do texto, então a tradução é sim esse texto novo (mesmo que se aproxime muito do texto original).
     Recentemente fiz uma experiência que busca falar um pouco disso na própria forma do texto: escrevi o poema “Paris não tem centro” em francês e pedi para a poeta Érica Zíngano traduzir o poema para o português. A versão final do poema (em português) é dela e não minha, mas como normalmente eu escrevo em português (e é a minha língua), ao publicar essa versão do poema em português, ele tende a ser lido como se fosse um “original”. Ao fazer a referência à Érica, não quis colocar “Tradução de”, pois isso levaria o leitor a pensar o texto como uma tradução e eu queria que fosse visto como um original. Então combinamos que ela entraria no poema como personagem, ou seja, como a tradutora do poema. De algum modo queria que essas nuances fizessem ele ser lido como um original e uma tradução ao mesmo tempo. (o poema saiu como plaquete aqui https://www.7letras.com.br/paris-n-o-tem-centro.html)

dani e diogo: A poesia é uma forma de resistor?

m: Toda vez que leio essa pergunta, rio e sinto que não sei responder. Saio do computador e volto e releio: outra vez, rio. No livro, ela entra como pergunta justamente porque não sei o que responder. O que vocês acham? Como produzir uma “resistência”, esse espaço, essa espécie de quadrado que desenhamos com o dedo no ar para poder colocar a cabeça dentro e pensar e escapar da velocidade das coisas?
     No poema citado por vocês, eu cito uma pergunta anterior a essa que era: “a poesia é uma forma de resistência?”. Eu não conseguia responder porque achava que se respondesse “sim”, não haveria nenhuma resistência. Como o poema poderia resistir sem resistência? Eu achava que era preciso descolar (ou deslocar) a palavra “resistência” do sentido corrente dela. Então, queimou a “resistência” do chuveiro e achei que esse podia ser um tipo de descolamento. Por outro lado, o google sugeriu na função autocompletar a palavra “resistor”, que também me pareceu operar um deslocamento. Juntando essas duas formas de descolar, achei que podia desenhar o tal do quadrado com o dedo. Mas agora que chegamos nessa forma, será que daria para dizer que a poesia é uma forma de resistores e simplesmente dizer sim? Eu não sei responder, e tendo a dizer que não, que o resistor seria esse processo, essa tentativa de encontrar ferramentas em algum momento específico que deem conta de algo específico. Não poderia dizer sim ou não e pronto.