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    A cada edição da revista garupa, um livro. Desta vez, lançamos o poeta Italo Diblasi, com seu O Limite da navalha. Abaixo um texto do crítico paulista Ricardo Domeneck sobre a estreia do poeta carioca. Ricardo já falou de Italo em sua revista Modo de Usar & Co, e agora fez a gentileza desta primeira leitura. O lançamento do livro será em março/2016. Veja informações em nossa página do facebook.

 

Se o fio da navalha fosse uma fronteira, entre quais dois países?:
acerca do livro de estreia de Italo Diblasi

     Ao contemplar a literatura brasileira de maior visibilidade, a de uma Weltanschauung ou cosmovisão eleita, hegemônica – ao menos durante meu período de consumo de oxigênio neste território –, parecemos passar por uma educação firme, ditada por aqueles que nos parecem homens sensatos, mulheres lúcidas. Homens e mulheres com clareza de pensamento, percepção. Que olham o país, a existência, com olhos sem ilusão, calmos, mas não turvos. Não transbordam. “A vida apenas, sem mistificação”, como escreveu o mineiro Carlos Drummond de Andrade. Tivemos grandes poetas lúcidos, que não se deixam engambelar. Não floreiam o real. Abrem os olhos, veem, enxergam. Como o pernambucano Manuel Bandeira, que apesar da paisagem, da Glória, da baía e da linha do horizonte, não podia deixar de ver o beco. Penso na elegância minimalista tanto de Machado de Assis como de Orides Fontela, para viajar amplamente nos matizes das letras no país.
     Na correspondência entre Haroldo de Campos e Octavio Paz, em uma das cartas publicadas no volume Transblanco: em torno a Blanco de Octavio Paz (RJ: Editora Guanabara, 1986), os dois contendem sobre as diferenças de natureza e índole das poesias hispano-americana e luso-brasileira. Para Campos, a paixão hispano-americana pelo surrealismo e o que ele via como uma hipermetaforização distinguiam a poesia do continente em castelhano, de forma negativa, da brasileira, algo que Paz rechaça, notando o tom de condescendência do paulistano. É compreensível, conhecendo as prioridades do Grupo Noigandres, buscando o osso e a medula no que chamaram de “geleia geral brasileira”. Também já se discutiu com frequência os motivos pelos quais o chamado Realismo Mágico tomara com força a prosa dos vizinhos, quando a brasileira pareceu seguir fincada num realismo sem adjetivos. São narrativas conhecidas. A marginalidade do surrealismo no Brasil, com exceção das obras de Murilo Mendes e, em certa medida, Jorge de Lima, já foi discutida, questionada, reiterada.
     No Brasil, poderia parecer realmente haver uma separação entre o que eu chamaria com cuidado de certas famílias espirituais. Os secos, polidos, de olhos abertos, claros. E os em sonhos e pesadelos, violentos, esbravejando. Estes últimos tendem, por vezes, é fato, ficar à margem. Os visionários Murilo Mendes e Jorge de Lima em relação a Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Uma mesma São Paulo, ou talvez não a mesma São Paulo, em poetas tão distintos quanto Augusto de Campos e Roberto Piva. Para os que se mantém acostumados às narrativas centrais, que buscam apaziguar períodos históricos, sempre complexos e contraditórios, a única solução ao perceber contemporâneos exatos como Augusto de Campos e Roberto Piva em um mesmo território é alçar um e obscurecer o outro. Mas a vida, mesmo sem mistificação, é sempre caótica, insiste em nos desmentir, desdizer, contrariar. A vida é do contra. A poesia, certamente, é.
     Em nossa América Latina como um todo, somos demasiado adeptos do dualismo como solução para narrativas histórico-literárias. Algo parecido ocorre na América do Norte, com suas obsessões por trincheiras entre “raw X cooked”, espelhadas em nossas várias contendas de formalistas contra marginais, e assim por diante. Mas as fronteiras são mais tênues para aqueles que tentarem enxergar para além das narrativas por “linhas de força”, tão artificiosas. Carlos Drummond de Andrade era capaz das mais dissonantes e surpreendentes imagens. Como esquecer aquelas ondas, “galinhas em pânico”? E, se não transbordava, sua raiva era clara em tantos momentos. A flor sempre acompanhada de náusea. E os momentos de clareza solar em Murilo Mendes, especialmente em livros como Siciliana e Tempo Espanhol? Ainda que guiados pelo próprio poeta, nossa forma de catalogar João Cabral de Melo Neto não nos esconde a beleza de Os Três Mal-Amados? E, em toda a sua sutileza e minimalismo elegantes, não consigo deixar de ver Machado de Assis e Orides Fontela como dois de nossos escritores violentos. A lucidez só pode ser violenta em nosso país, talvez neste planeta como um todo.
     Mas temperamentos não podem ser negados, ou encaixotados. A boca-do-lixo paulistana conheceu, entre meados da década de 60 e 80, homens de um inconformismo e resistência resiliente a serem indexados, ainda que tenham tido negados os holofotes em seus inferninhos. O já mencionado Roberto Piva, que alcançou pela força de sua poesia um público mais amplo neste século, mas também os ainda obscuros Orlando Parolini, Raul Fiker, ou Décio Bar. O troço que daria, se não o segurassem, no Waly Salomão em pleno Carandiru. Ou aquele angélico nosferatu, Torquato Neto, caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro como quem perambula pelo Hades.
     São imagens e perguntas que me vêm feito tromba d'água à mente ao ler o livro de estreia de Italo Diblasi, O Limite da Navalha, e, como crítico obcecado por historicismos, tento entender o que me parece distinto nele da poesia brasileira contemporânea. Não é inverdade ver nele uma filiação à linhagem dos visionários violentos, dissonantes, como Murilo Mendes, Jorge de Lima, Lúcio Cardoso, Roberto Piva, Orlando Parolini. A epígrafe de Federico García Lorca no umbral do livro indica em que sala estamos prestes a entrar: “porque não sou um homem, nem um poeta, nem uma folha / mas um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado.”
     O próprio jovem poeta carioca já declarou ter em Roberto Piva um mestre central. E para um leitor e admirador do paulistano, ver suas inseminações frutificando em uma nova geração de poetas, e, particularmente neste livro de estreia de Italo Diblasi, é perceber, uma vez mais, como a pluralidade poética brasileira, mesmo quando reprimida, causa movimentos sob nossos pés quando menos esperamos, nas placas tectônicas de nossa língua. Os estudos de Italo Diblasi informam estes interesses e questionamentos que percorrem o livro. Com um trabalho voltado para a História das Religiões, especialmente na Antiguidade do complexo cultural que é o Mediterrâneo, Italo Diblasi vem pesquisando textos gnósticos dedicados ao conhecimento de um obscuro deus, Abraxas, uma divindade ligada a práticas de feitiçaria ainda nos primeiros séculos da Era Cristã. Segundo Diblasi, este estudo histórico-religioso liga-se à prática poética porque “o poeta nasce oral, cantando, e a feitiçaria tinha uma estreita ligação com o canto, a pronúncia e entonação correta das palavras mágicas. A própria palavra Abraxas é mágica. Na guemátria grega, corresponde ao número 365, a totalidade do ciclo do ano”.
     Aqui, ocorre uma ligação não apenas poética com Roberto Piva, mas ética e ideológica. “Ética e estética são uma só”, escreveu Wittgenstein. O interesse pelas práticas do xamanismo em Piva, sua guerra contra o patriarcado cristão, renascem em Diblasi no seio de sua crença na poesia como sobrevivência da palavra mágica. Isso é importante também para compreender o vocabulário do poeta, que, assim como em Murilo Mendes e Roberto Piva, mas de forma pessoal, não se concentra em certos elementos como o fogo e a água por uma espécie de objetivismo agnóstico, cientificista-realista, mas por suas relações com o contexto mágico dos vocábulos. O poeta colhe na raiz o que liga a etimologia e a feitiçaria. Em Murilo Mendes, isso se dá por sua crença cristã na ligação entre todas as coisas, a “comunhão dos santos”, mas em poetas como Piva e agora Diblasi, há ainda a guerra contra as dicotomias e velhas oposições moralistas. Não a comunhão dos santos, mas uma comunhão de tudo, talvez, pela molécula dimetiltriptamina, a base da ayahuasca, do daime, do iagê. Não transcendência cristã, como em Murilo Mendes e Jorge de Lima, mas um escape da jaula do real pela imanência.
     Mas, porque tudo se contradiz, isso não explica por completo a prática do autor. Pois, se os poemas de Italo Diblasi querem escapar do real, é porque o conhecem e o veem de olhos abertos, não turvos, sem ilusões. Este é um livro escrito durante as Jornadas de Junho, durante o acirramento e radicalização das batalhas políticas no país. Se nos poemas ele espera que o fogo místico e mítico consuma o real, o autor não se esquece que precisa saber que dia é hoje ao invocar um deus. Entre nosso mundo e o mundo-outro, há um calendário a ser respeitado. Pessoalmente, além dos poemas de melhor fatura poética e técnica, interessa-me quando o autor mescla registros da fala, e por vezes até poéticas que veríamos como antagônicas, ao lançar mão do verso curto, ao mesmo tempo em que pratica sua poesia de caráter fortemente fanopaico, intercalando a um vocabulário de cunho religioso e místico momentos de percepção dessacralizada de um cotidiano mesquinho. Neste aspecto, ele talvez esteja mais próximo de Parolini que de Piva. O poema que dá título ao livro e encerra a primeira parte demonstra algo disso:

O limite da navalha

    Havia crescido
       e era definitivo:
já tão banal o forte gosto
          da aguardente
de velhos tempos coisa alguma
         nem o corpo
também a pele manifesta seu devir
          extingue-se, camaleoa
  de máscara em máscara
o bruto corpo da árvore castigada
    ao cair das folhas.
              Cresci
perdi castelos e pudores
       perdi sorrisos, sim
            perdi favores
deixei aos sóbrios a vitória
      sobre o tempo
 ganhei silêncios & temores
           ganhei revolta
   quando mais queria calma
ganhei suor e não o pão
           ganhei o Ar
a plenitude do hemisfério
        a anarquia nos trópicos
   ganhei perdi
          ganhei & perdi
uma metralhadora de espantos
      em eterno ir e vir
e para sempre fustigado à labareda
   porque a vida era mesmo
       uma invenção do caralho
um paroxismo de doer as flores

     Na segunda parte do livro, estes aspectos mesquinhos do cotidiano, em choque com nossas ilusões jovens, tomam maior corpo em crítica, mas as fronteiras entre real e mítico continuam moventes; visitamos topônimos como Praça Mauá e Jerusalém, e se seguem-nos palavras que caminham na corda-bamba entre concreto e abstrato, como “fogo”, o poeta logo nos traz para o chão ao informar-nos a hora do poema, ao confessar que a invocação vem por entre dentes amarelados, e Shiva dança encarnada em uma prostituta no Centro do Rio de Janeiro. Ao piquete de greve contra um mundo materialista, Italo Diblasi diz: presente.