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Pequenas Biografias: um documentário biográfico em cena

por Amanda Cinelli


Rio de Janeiro, zona sul, estamos em laranjeiras, no humaitá, ou em botafogo, flamengo; artistas, atores, ou autores, histórias biográficas. Tudo acontece na fronteira e se complementa de forma sutil. De um lado, o real; do outro, a ficção. No palco, os conceitos se misturam. Com espírito documental e personalidade própria nasce Pequenas Biografias, uma produção independente, com texto metalinguístico criado a partir de histórias curtas e reais.

Seis atores levam à cena a árdua criação e elaboração do roteiro. Criado a partir de pesquisas cênicas feitas pelos próprios artistas, o processo perpassa por longas conversas via e-mail, whatsapp, SMS e qualquer outro meio de comunicação atual até chegar às antigas reuniões presenciais. “Ninguém está em cena dizendo exatamente o que falou nas tais reuniões”, diz Marcio Freitas – responsável pelo texto e direção da peça – em entrevista ao site Teatro em Cena, “é um reprocessamento rigoroso de formação cênica”.

A verdade reprocessada ao público se apresenta por meio de diversos recursos; afinal, é necessário que a ficção não se apresente como não-real, mas como um realismo que busca uma realidade. A trilha sonora do espetáculo mixa sons da realidade para compor o ambiente, na tentativa de envolver o espectador na proposta. Vídeo, câmeras, cartazes e grandes placas são utilizados pata nomear os personagens em meio ao diálogo dos atores.

Com a encenação reproduzindo, em parte, o que aconteceu nos encontros gravados em áudio, ainda que de maneira ficcional, o dramaturgo visa problematizar a imagem documental. “Quis falar disso tocando em questões como memória e esquecimento. Mas além disso, a peça tem uma enxurrada de pequenas coisas que se ligam, algumas fortemente e outras mais sutilmente”, aponta. “Meu desejo era construir uma rede de sentidos, que tivesse coerência sem determinar leituras fechadas, que fizesse o espectador se perder nas imagens e também desse a ele pontos de ancoragem para leituras interessantes e talvez inusitadas”.

Essa proposta de montagem feita pelo grupo Teatro Número Três coloca, de certo modo, o cinema documental dentro do teatro. As montagens cênicas sempre tiveram dimensões diferentes das produções cinematográficas; o próprio engano geográfico, uma particularidade do cinema, já seria o suficiente para nos apontar esta diferença. No teatro, a reprodução de um cotidiano conta muito mais com um lado lúdico do público do que o cinema, pois as possibilidades de uma montagem teatral são, digamos, mais limitadas. Daí surgem correntes como o teatro da farsa ou os elementos inerentes à Commedia Dell'Arte, que propõe justamente uma crença do público naquilo que veem. Ou seja, há um código que diz “isso que vocês estão vendo é teatro”.

Como, então, trabalhar o teatro de maneira naturalista – e mais – dentro do gênero documentário? Sabemos que há uma diferença entre realismo e realidade. A reprodução da realidade, “tal qual a vemos”, aponta para uma proposta realista de montagem. No entanto (e no caso de Pequenas Biografias), quando as histórias recolhidas pelo elenco aparecem no palco, elas – por mais que tenham sido retiradas do cotidiano – se esgarçam para além do real e transformam-se em produto/matéria artística. Há um abismo entre a história vivida e a história contada.

No cinema documental é feita a escolha do assunto, e um recolhimento dos “relatos”, mas há também a montagem final, feita pelo diretor em uma ilha de edição. É neste momento que o documentário surge. Se há montagem, há manipulação/interferência e, desse modo, há também produto/matéria artística. Já não podemos falar em realidade nos termos que o senso comum a coloca.

No teatro, então, como é possível trabalhar essa linguagem documental tencionando os conceitos de realismo, realidade e real? A proposta da peça não é a de se transformar num legítimo documentário cinematográfico, mas trabalhar com os elementos inerentes a ele e, assim, criar uma rede onde ficção, biografia, realismo e realidade se cruzem diante do público. Ao longo da apresentação, a ideia é confundir o espectador em um jogo lúdico, no qual a história se fragmenta nos diversos veículos e técnicas – orgânicos ou tecnológicos: o corpo, uma voz biográfica, via vídeo, se intercruzando nas tecnologias da informação – e cria uma confusão entre ficção e realidade.

O processo de pesquisa e montagem deu início em 2011, incitando cada ator a pesquisar independentemente seu objeto, que poderia ser qualquer personagem. Nos encontros frequentes, o diretor supervisionava o andamento e gravava as conversas em áudio. Foi um processo que durou muito tempo e serviu de base para o roteiro semificcional. “Nem todos os atores que estiveram no processo estão em cena, nem todos os atores em cena estiveram no processo. Quando os atores falavam das suas pesquisas, acabavam falando muito de si, e o que aparece em cena é essa mistura entre a vida dos atores e os objetos que eles escolheram”, explica o dramaturgo.

Pequenas Biografias é um espetáculo documental que mescla realidade e ficção ao contar a história de um grupo de 6 atores que investiga a vida de seus familiares, de personalidades públicas e de desconhecidos. Contudo, o projeto de biografias é interrompido antes de se concretizar. Anos depois, outros artistas retomam as antigas histórias e analisam os documentos que restaram, tentando assim dar sentido aos fragmentos do passado.