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sobre trovas e tempestades

por Gustavo Silveira Ribeiro


                                              Sobre trovas e tempestades
                                atravessar uma canção que me atravessa


                                                                                                              Tudo o que sobra
                                                                                                               é a trilha sonora.
                                                                            Ricardo Domeneck, Cigarros na cama

1. Em mim, o efeito terrível de uma canção, de um poema, se dá a ver sempre como uma forma complexa de alegria: potência do corpo, algo de vital que se acende, o transtorno do pensamento que se dobra aos afetos. Ideias e sensações se misturam e embaralham; o ritmo (qualquer ritmo: do texto, da música, da minha própria frequência cardíaca quase sempre apressada) se imprime como cadência e movimento, sendo compreendido antes pelos sentidos, que estabelecem com ele uma espécie de compasso, de idiorritmia que permite, só então, acessar os significados possíveis que a inteligência é capaz de construir a partir da obra. Idiorritmia, repito agora e penso, em tentativa pessoal de definição: é (quem sabe?) descobrir-se de repente andando no mesmo passo com alguém recém-conhecido, linhas paralelas, em respiração próxima e comunicável; é inventar formas de viver junto, de coabitar um espaço ou uma experiência, ver-se atravessado por uma presença (um corpo, uma imagem, um texto?) que, sutil, se impõe. No caso preciso e precioso de uma canção/poema, a idiorritmia traduz-se (também) num processo de afinação, no qual palavras e sons fundem-se aos movimentos da vida e passam a participar do seu tempo e tom. Anda-se, nesse sentido, dentro da música e da literatura (com os fones colados ao ouvido) como elas são capazes, portáteis, de por dentro passear a todos nós, qualquer um, acompanhando e invadindo quem quer que se disponha a ler, ouvir, deixar-se trespassar.

2. O texto em tela, que aqui interessa de perto ouvir e fazer falar, é a canção “Trovoa”, de Maurício Pereira, em gravação do trio Metá Metá feita e levada a público, no álbum do grupo, em 2011. É uma peça de múltiplas camadas, muitas coisas numa só, mas talvez fundamentalmente duas, de início: trata-se da afirmação tempestuosa de um amor, feita a modo de uma conversação; e também de um périplo pela cidade de São Paulo, cenário e personagem do roteiro lírico que a canção arma. Inseparáveis, essas duas faces de “Trovoa” misturam-se, em verdadeiro amálgama, ao arranjo sonoro que inventa e recobre o texto que se vai desenhando. A um só tempo arcaica e atualíssima – logo também estranha e fascinante –, a forma-canção ensaiada pelo autor e reproposta pelo trio que a vai performar equilibra o som tranquilo do violão e da flauta ao canto recitativo no qual a melodia ora se insinua, firme, em meio às palavras, ora se perde na cadência rápida do declamatório, numa modalidade, quem sabe?, de spoken word, na qual a modulação da voz e do canto reivindica a presença da poesia ao mesmo tempo em que confere um aspecto dramático ao texto e à massa sonora daí decorrente; que encena, na sua linguagem entre coloquial e erudita, um discurso amoroso tenso e torrencial, carregado de eletricidade e desejo. O recitativo do canto traz à “Trovoa”, como ficou dito, uma sonoridade antiga, francamente pré-moderna, na qual a voz não se harmoniza inteiramente ao arranjo, restando independente em tantos momentos, apenas acompanhada, ao fundo, pelos ritmos e acordes mínimos dos instrumentos. A melodia encantatória das palavras, por sua vez, impõe-se à cadência particular da música, atravessando-a para garantir e renovar, nos ouvidos acostumados à forma fácil da música-padrão, o efeito do descompasso e do estranhamento: a profusão de rimas internas e repetições, encontros vocálicos e espelhamentos métrico e sintático, bem como a sequência de versos inundados por proparoxítonas, palavras de corpo alongado e grave – tudo isso, todos esses elementos concorrendo para formar, no bojo da canção/poema, uma massa sonora sofisticada, próxima do paradoxal: num certo sentido muito simples, despojada e quase empobrecida, e às vezes excessivamente cerebral, cuidadosamente elaborada.

3. O encontro com a canção/poema deu-se, claro está, em meio a uma reflexão pessoal sobre o rito da paixão, seus devaneios e desgraças. O relato da entrega, dos riscos e das andanças desnorteadas que o texto apresenta encontrou eco no que eu vinha lento elaborando – ou assim julguei, às vezes em perturbadora sintonia (diria mesmo quase mimetismo), às vezes como força propulsora, elemento poietico que cria (e não só re-apresenta) o sentimento exposto. Para dizer de modo direto: eu atravessava os dias de revelação e caos da exposição sem limites ao outro (à incerteza), ao desconhecido que parece familiar e por isso mesmeriza e atrai, enquanto era, de modo simultâneo e indissociável, atravessado pela canção, reconhecendo e imaginando – com ela, a partir dela – o turbilhão de afetos que em mim se precipitava feito tempestade. As trovas (o gesto trovadoresco mobilizado pelo texto, que quer ser declaração amorosa e pedido, às vezes em franca atitude de reverência) se mesclavam aos meus pensamentos e algo como um encantamento profundo quedava sempre, como resultado inúmeras vezes renovado, da experiência da audição. A metáfora do título, disseminada e repetida ao longo do poema, o estrondo do trovão que repercute no sujeito e o desestabiliza, “minha cabeça trovoa”, era, em si mesma, significante: anunciava o som insuportável, impossível de ser ignorado, da presença densa do outro e dos abalos que ela é capaz de provocar. Como fenômeno natural, o trovejar é pura espontaneidade e violência, acontecimento (no sentido pleno da palavra) que escapa ao controle e ao cálculo, força que se manifesta independente da vontade como oferta e acaso, símile sensível, imagem-síntese do rito (com suas fórmulas algo religiosas, seu poder de deslocamento subjetivo e medo) e das ficções do enamoramento que se delineiam num instante, e que em mim quiseram se fazer ver com energia, mesmo que encobrissem, talvez, engano e vazio.

4. Armada como um diálogo ora silencioso e íntimo, ora aberto e tumultuoso, “Trovoa” alterna vozes, velocidades e tonalidades, oscilando permanentemente, de modo tantas vezes indecidível, não apenas entre os elementos masculino e feminino que nela parecem se encontrar e enfrentar. A canção oscila também entre posturas e afetos extremos: a reverência e a insubmissão, a doçura e o desespero, a plenitude e o caos. O dado decisivo desse movimento contínuo dos sentidos no texto pode ser notado, inclusive, na modulação hábil da voz: às vezes tranquila e reconfortante, fazendo eco às lembranças amenas de um amor, ela passa tantas vezes rapidamente ao atropelo da dicção e ao (quase) grito, dando a ver no plano imediato das sensações aquilo que o poema, imagética e conceitualmente, procura propor. Ao nível mesmo do vocabulário, o jogo de alternâncias pode ser visto em detalhes, revelando muito do trabalho de filigrana que organiza a canção: a delicadeza e a força se alternam e entrelaçam na mistura que o texto traz: de um lado, a referência erudita, o uso sofisticado da língua (o próprio termo-título, “trovoa”, vai aparecer num registro raro, num deslocamento sintático-semântico pouco usual; a frequência e a felicidade com que se sucedem as muitas proparoxítonas que povoam o poema, em fino ajustamento de som e sentido; a referência, por fim, indireta e ainda assim marcante ao universo da poesia medieval, com seu imaginário cortês e vassalo, sua indecisão entre o canto e a escrita). De outro, no entanto, a presença da cidade inabordável e gigantesca de São Paulo, sua linguagem própria, o coloquialismo de tantas expressões típicas, o imaginário popular das multidões anônimas, o pano de fundo das ‘padocas’, por exemplo – descontraído e algo reconfortante, enfim –, associado também a bairros, ruas e certas paisagens da metrópole. Conjugados, esses dois registros vão formar uma sequência de lógica bastante particular, segundo a qual um verso nasce do outro, uma imagem de sentido diverso puxa a outra (de significado oposto) e o todo do poema vai se construindo assim, em equilíbrio tenso e precário, mas ainda assim preciso. A enumeração caótica (mas tão coerente na mistura de choro, presentes e afeto, apresentando as muitas faces do jogo erótico) de um verso como o que está incrustado no meio da primeira estrofe:

(...) Destino canções pros teus olhos vermelhos
flores vermelhas, Vênus, bônus
Tudo o que me for possível, ou menos
mais ou menos
me entrego, ofereço, reverencio a tua beleza (...)

traz a doçura simples dos elementos cotidianos (as flores, principalmente) e também a recordação sutil do mito, seus sentidos inesperados nesse contexto, a abstração, enfim, que remete, logo de saída, ao amor quieto e tenso, materializado na adoração expectante do Belo: “me entrego, ofereço, reverencio a tua beleza/ física também, mas não só/não só”. Junto a ele, como contraponto e complemento, se vai encontrar outro amontoado de substantivos, outra sequência enumerada de objetos corriqueiros que, dessa feita, não terminará na diferença contrastante do sublime (na elevação idealizada do mito, Vênus), mas irá começar, numa inversão sintomática de perspectiva, com o som rascante de uma rajada de tiros, sonoridade e imagem mimetizadas pelo verso em destaque, cujas palavras, escolhidas com cuidado, parecem estilhaçar-se em sílabas entrecortadas, de leitura interrompida:

(...) Pressinto como você chega, ligeiro
vasculhando a minha tralha
bagunçando a minha cabeça
Metralhando na quinquilharia que carrego comigo
clipes, grampos, cremes, tônicos
toda a dureza incrível do meu coração
feita em pedaços (...)

A alternância entre ambos os trechos, a disposição em que se encontram no corpo do poema, dá bem a medida do que entendo ser o princípio fundamental de “Trovoa”. A passagem (sempre reversível, não obediente a uma sintaxe rígida) entre trova e tempestade, isto é, entre elementos díspares que se equilibram a partir da contradição, numa curiosa espécie de dialética, na qual os sujeitos do discurso, os motores da cena armada pela canção, existem e se realizam amorosamente no ponto exato em que os contrários (palavras, afetos, melodias, desejos) se tocam e potencializam mutuamente, conforme se pode ver nos dois exemplos a seguir: “Vou sossegado e assobio/e é porque confio em teu carinho/mesmo que ele venha num tapa (...)” e “Deslocamento atômico/para um instante único/em que o poema mais lírico/se mostre a coisa mais lógica.”

5. Apresentada com a roupagem da servidão e da vassalagem, mas afirmando-se pelo dom, isto é, por uma atitude que não espera nem requer qualquer troca ou contraparte, existindo como pura entrega presentificada[i], a escavação do outro que caracterizará o encontro erótico no poema se confunde com a escrita e a invenção. O canto é aqui, também, dom: o ato da criação se confunde com a oferta amorosa, ambos tocados pela necessidade de uma entrega an-econômica ao mundo e ao outro. Projetar o afeto (lançá-lo além) e compor a canção-poema são ações paralelas, num certo sentido, porque movem-se a partir do mesmo gesto de dispêndio, de igual demanda generosa. Amar é de fato – quando não se trata apenas de puro impulso narcísico, como tantas vezes ocorre – sair de si, externar-se quase por completo, abrir-se à desmesura de um encontro com aquilo (ou aquele) que não se conhece nem se pode controlar; criar, por sua vez (compor, escrever, montar, esculpir), é também um salto no escuro, uma aposta total no jogo e no risco – desde que não seja apenas reprodução de temas dados ou a proposição vazia, acrítica, das formas fáceis do Mercado. Daí a estrutura discretamente metalinguística da canção, que de maneira deliberada, mas sutil, aproxima no texto as duas esferas, movendo a atenção do ouvinte-receptor na direção do incerto e do espanto: as canções que o eu-lírico destina a sua interlocutora vão brotando, ou assim a composição me faz crer, no ato mesmo da criação, no instante em que a performance parece inventar, e não reproduzir, um texto e uma melodia pré-formatados. E assim é também com a narrativa de um amor antigo, já conhecido, mas que se renova no percurso proposto pelo poema, já que os momentos de início e descoberta, a visitação das origens do afeto e do encontro, por assim dizer, também aparecem no texto, que procura encenar dramaticamente vários passos da vida do casal: a celebração do instante pleno que se compartilha (estrofes 1 e 2), a procura do amante ausente (estrofe 6), a lembrança de passagens intensas e afáveis (estrofe 3), a confusão de uma briga, o desespero do desencontro (estrofes 7 e 8), as promessas finais – a modo quase de afirmação de um recomeço – dos laços que os mantém atados (estrofe 10). Por mais que o desfecho seja esperado, que o teatro de emoções posto para funcionar pela canção-poema traga à tona um roteiro em alguma medida reconhecível, a tensão criada pelo texto e atualizada pela interpretação estudada do Metá Metá quer dar a impressão de um conflito imprevisível, de uma história cíclica (e em permanente estado de suspensão) cujo desfecho não se sabe de antemão.

6. Quantas vezes é preciso ouvir uma canção para entendê-la? Ler um poema até memorizá-lo, recitando-o em horas próprias e impróprias, será necessário para atravessá-lo convenientemente? Li tantas vezes quanto pude o “Cântico dos cânticos para flauta e violão”, de Oswald de Andrade; não frequentei ainda, o quanto quis, as páginas do Ciclo do amante substituível, do Ricardo Domeneck. Mas em ambos encontrei – e vi agir em mim, duplicada pela leitura – a força ambígua da obsessão, a concentração absoluta no objeto do amor, espécie de impulso que não apenas impele ao outro, mas que o quer capturar, cercar de cuidados, restringir e conter completamente. Tanto na celebração afirmativa e guerreira de Oswald – que localiza na amante revelada (Maria Antonieta d’Alkmin, nome melodicamente repetido tantas vezes no poema) a necessidade ética e afetiva da resistência aos tempos sombrios, estejam eles abrigados no peito do poeta ou na catástrofe que se adensava ao redor, em meio a Segunda Grande Guerra –, quanto na extensa meditação desencantada – e irônica – de Domeneck sobre o fim dos relacionamentos (e que tem na figura onipresente d’ O Moço a sua mola propulsora e o seu centro inamovível, astro em torno do qual tudo o que há de sublime, fútil e violento no amor se concentra), a paixão está representada como em “Trovoa”, repleta da força centrípeta que tem a obsessão, sua capacidade atrativa e circular, que captura e se impõe. A experiência amorosa e a fruição estética apresentaram para mim, nesse contexto, característica similar, uma vez que a insistência da audição da música traduzia a maneira como eu compreendia a lógica do encontro, e os textos que sempre me vinham à memória ao ouvir a canção eram, eles também, marcados pelos mesmos elementos de repetição e insistência, pela mesma imagem de totalidade que se espalha e materializa liricamente, seja na brados de vitória do Cântico, seja nas confissões ridículas e belíssimas presentes no Ciclo. A beleza da canção e dos textos, seu fascínio específico, vinha da mistura desses dados estranhos, uma muito hábil expressão formal do afeto, feita de cenas e sonoridades felizes, junto a uma expressão pesada, de fato dolorosa, de uma experiência que ultrapassa e recobre por inteiro o sujeito da escrita (e do canto), deixando-o sem saída. As duas estrofes finais da canção de Maurício Pereira apontam nessa direção, construindo uma síntese daquilo que o poema tem de mais interessante, algo que repercutiu em mim e me fez pensar, em chave ao mesmo tempo pessoal e crítica, sobre a mobilização quase doentia a que o afeto pode conduzir; a energia destrutiva que nele se abriga, mas que ainda assim pode ser, em alguns casos e para algumas pessoas, potência vital e convite à criação de novas formas e novos mundos.



[i] Aqui, quem sabe, a recuperação do rastro medieval que ocorre em “Trovoa” encontre o seu limite: longe de ser oferta sem esperança de retorno, direta oferta de afeto e dedicação ao outro, à mulher amada, as práticas amorosas da vassalagem e da servidão nunca deixaram de ser parte de uma elaborada convenção social, com papéis muito bem definidos e expectativas claras quanto ao sucesso erótico e econômico do encontro, uma vez que o casamento e as relações consanguíneas eram forma segura de ascensão e sobrevivência.