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let's play

por Juliana Travassos



    Benjamin, em um dos trechos de Imagens do pensamento, traz a imagem do jogo de azar como encerramento das mais ardentes paixões. “O jogo”, diz ele, “tem devotos apaixonados, que o amam por ele mesmo e de modo algum pelo que ele dá. E mesmo que o jogo lhes tire tudo, procuram a culpa em si mesmos”. Benjamin fala de um célebre jogador, o príncipe de Ligne, que se tornou famoso pela postura com que aceitava as perdas mais extraordinárias. Sua postura era sempre a mesma: a mão direita, que havia lançado as apostas, pendia solta para baixo; enquanto a mão esquerda, por maior que tivesse sido a quantia perdida, ficava imóvel enfiada no bolso do colete, do lado esquerdo do peito. Mais tarde, por intermédio do camareiro do príncipe, soube-se da existência de três cicatrizes em seu peito – a marca exata das três unhas que havia fincado em si mesmo diante da mesa de jogo de forma tão imperceptível que aqueles que jogavam com ele jamais imaginariam.
    Em um passeio breve pela bibliografia de Benjamin, é notável que a imagem do jogo é recorrente. Neste mesmo livro, um pouco depois do relato sobre o príncipe, está um trecho chamado “Rosquinha, pena, pausa, queixa, futilidade”, em que ele fala de um jogo de construções de frases ao acaso muito comum entre as crianças recém-alfabetizadas. Em Infância em Berlim há também um trecho destinado a um jogo, chama-se “Jogo das letras”, e nele Benjamin comenta que nada lhe trazia mais saudade que este jogo de letrinhas, com o qual teve seus primeiros contatos com a escrita em sua infância. Neste trecho, elabora sobre o esquecimento e o prazer do aprendizado a partir da lembrança do jogo.
    Também em Rua de mão única há um escrito destinado, indiretamente, à jogatina, desta vez de outra espécie. Chama-se “Agência de apostas”. Nele, Benjamin tem como tema a maneira que o burguês conduz sua vida amorosa. Ele diz que “a existência burguesa é o regime dos assuntos privados”, que “o filistinismo proclama a privatização da vida amorosa”, e que os novos padrões burgueses de flerte dispensavam a responsabilidade social com a mulher, a conquista e a luta contra os concorrentes – Benjamin via nesses elementos a força espiritual do casamento.
    Poderíamos, em princípio, cogitar dois tipos diferentes de jogo. Um é o jogo de azar, a jogatina que sobrevive na vida subterrânea da cidade grande, o jogo que vive na e da sombra social. Esta imagem é acionada por Benjamin quando seu objeto de pesquisa é a cidade, a burguesia, a multidão, o vazio da vida moderna, o esquecimento completo do passado. O outro é o jogo das crianças; este é um jogo solar, traz boas lembranças e proporciona acasos agradáveis, como o jogo das letrinhas e o jogo das palavras. Ele surge – com menos frequência – quando Benjamin trata da experiência e da memória involuntária, da lembrança que constrói sentido, ou seja, de uma forte presença do passado, por mais fragmentado que seja.
    Na nona parte de “Alguns temas em Baudelaire”, Benjamin traça um paralelo entre o trabalho do operário e o jogo de azar. Apesar de aparentemente antagônicas, as duas atividades têm em comum o fato de que encerram em si mesmas o passado; como também que as duas pressupõem gestos mecânicos, que dispensam a escolha, evitam o arbítrio. Para esclarecer a comparação, Benjamin constrói uma relação entre o movimento repetitivo de lançar os dados e pegar as cartas feito pelo jogador, e o movimento que o trabalhador tem ao operar a máquina: é a máquina quem impõe repetidas vezes o mesmo movimento ao seu operador. 
    As duas atividades, a do operário e a do jogador, são isentas de conteúdo. A jogada anterior não diz nada sobre a próxima jogada, e assim o jogo liquida a importância do passado. Assim também é o operário diante do processo de trabalho industrial, “cada operação da máquina não tem qualquer relação com a precedente, exatamente porque constitui a sua repetição rigorosa”. Benjamin cita uma litografia de Senefelder em que uma casa de jogos é representada; nela, a gestualidade dos jogadores evidencia que todos estão, cada um de forma distinta, possuídos pela paixão. Ele diz que

as figuras em questão demonstram como o mecanismo, a que se entregam os jogadores dos jogos de azar, se apossa deles, corpo e alma, de tal forma que, mesmo em sua esfera pessoal, não importando quão apaixonados eles possam ser, não podem atuar senão automaticamente. Eles se comportam como os passantes no texto de Poe. Vivem sua existência de autômatos e se assemelham às personagens fictícias de Bergson, que liquidaram completamente a própria memória.

   O relato do príncipe de Ligne ganha, agora, outra dimensão. O príncipe tentava ocultar o seu gesto diante da perda, e ficou famoso exatamente por sua incomum apatia. Entretanto, por dentro do colete, a paixão era a mesma, e ele não conseguia escapar da resposta automática de que fala Benjamin. Como vemos no trecho citado, a automatização do gesto é atribuída também à multidão representada por Edgar Allan Poe em “O homem da multidão”: “Se eram empurrados, cumprimentavam graves aqueles que os tinham empurrado e pareciam muito embaraçados”. Os gesto dos homens da multidão são sempre os mesmos.
    Logo depois, Benjamin cita o poema “O jogo” de Baudelaire: 

Nos fanados divãs das prostitutas velhas,
Os cílios de azeviche, o olhar meigo e fatal,
Cheias de tiques, e que fazem das orelhas
Cair um tilintar de pedra e de metal; 

Rostos sem lábio em torno de uma mesa de jogo,
Lábios sem cor, tíbias mandíbulas sem dente,
E mãos convulsas que uma febre deixa em fogo,
Palpando o bolso escasso e o seio inda fremente; 

Sob o teto encardido, agonizantes lustres
E lamparinas a jorrar grandes clarões
Sobre trevosas frontes de poetas ilustres
Que ali vêm esbanjar os suores e emoções; 

Eis a cena de horror que num sonho noturno
Ante meu claro olhar eu vi se desdobrando,
Eu mesmo, posto a um canto do antro taciturno,
Me vi, sombrio e mudo, imóvel, invejando, 

Invejando a essa gente de pertinaz paixão,
Às velhas putas o seu fúnebre esplendor,
E todas a vender de si algo em leilão,
Uma beleza, outra o patético pudor! 

E me assustei por invejar essa agonia
De quem se lança numa goela escancarada,
E que, já farto de seu sangue, trocaria
A morte pela dor e o inferno pelo nada!

    Como Benjamin nos alerta, Baudelaire, não só nesse poema, mas também em outros escritos, faz uma comparação do jogador com o gladiador. O jogador, imerso em agonia e paixão, se lança como que na goela de um animal. Para o poeta, na figura do jogador está o modo como a modernidade encerra o heroico: é na casa de jogos que os maiores medos e as maiores coragens se configuram. A aposta empresta aos acontecimentos uma espécie de choque, que finda sempre junto ao término da partida, fazendo com que e o jogador não dê a estes acontecimentos sua devida importância. Dessa forma, “o jogo invalida as ordens da experiência”.
    O tempo do jogo de azar, diz Benjamin, é o tempo infernal em que vivem aqueles que estão fadados a sempre recomeçar e nunca concluir o que começaram. É sempre o jogador que reinicia uma partida, ele quem dá as cartas. Este tempo de repetições indiferentes torna o jogador alheio a qualquer experiência, assim como o operário, e o homem na multidão. Da mesma forma, na última estrofe do poema, Baudelaire assume radicalmente sua resistência ao fluxo incontido da modernidade: não mais feliz que o jogador, ele está fora da mesa, e inveja os fortes sentimentos e o entorpecimento que seu contemporâneo experimenta. Entretanto, enxerga o vazio a que está submetido o jogador, que troca “a morte pela dor e o inferno pelo nada”.
    De minha parte, confesso que os diagnósticos precisos e mal-humorados sobre a modernidade de Benjamin, Baudelaire, Poe, Simmel, Bergson etc. também me lançam violentamente para fora da mesa; mas ainda assim, dentro, cada vez mais dentro, com uma apatia alegre e sincera, arrisco o paradoxo: toda noite, os mesmos gestos que esbanjam suores e emoções. let’s play!

 

Referências:

 BARRENTO, João. “Percepção é leitura: a cidade, o olhar, a memória”. Limiares sobre Walter Benjamin. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2003. pp. 85-110.
BAUDELAIRE, Charles. “O jogo”. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (Edição bilíngue).
BENJAMIN, Walter. “Rua de mão única”. Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora brasiliense, 1978. v. 2. Pp. 9-71. (Obras escolhidas)
------. “Infância em Berlim”. Rua de mão única. Trad. José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Editora brasiliense, 1978. v. 2. pp. 71-142. (Obras escolhidas)
------. “Imagens do pensamento”. Rua de mão única. Trad. José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Editora brasiliense, 1978. v. 2. pp. 142-279. (Obras escolhidas)
------. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Editora brasiliense, 1989. v. 3. pp. 103-149. (Obras escolhidas)
POE, Edgar Allan. “O homem da multidão”. Histórias extraordinárias. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das letras, 2008, pp. 258-67.